Dubai cidade dos contrastes. Do glamour x simplicidade.
Da modernidade x tradição. Do conservador x permissivo.
Do amor x interesse.

Wednesday, April 11, 2007

Mil perguntas no inferno

"Mil perguntas no inferno", por Fernando Evangelista, Revista Caros Amigos, Ago 06 http://carosamigos.terra.com.br/

São 10 horas da manhã e faz sol em Praga, capital da República Tcheca. Houssam está num bar do aeroporto Ruzyne, tomando um café e lendo – sem prestar muita atenção – as notícias do jornal local. Um desconhecido se aproxima:– Posso me sentar? – Claro. Fique à vontade.Os dois se cumprimentam com um leve balanço de cabeça.– De onde você é? – pergunta o desconhecido. – Me diga você primeiro. – Diga você. – Eu moro em Milão – revela Houssam, com um quase sorriso. Então o desconhecido lhe diz:– Eu sou israelense e estou aqui...– Eu moro na Itália – corta bruscamente Houssam –, mas sou libanês e nunca conversei, nem nunca dividi a mesa com um israelense. O senhor me dá licença. E foi embora. Exatamente um ano depois, em agosto de 2006, Houssam Nasser, de 30 anos, está de mãos dadas com o filho Ahmad, na zona sul de Beirute, capital do Líbano. “Quero que você veja bem esta cena", ele diz ao filho, “para que nunca mais se esqueça.” O que os dois vêem é um amontoado de cimento e pó e ferro retorcido. Era o apartamento recém-comprado, em 15 de fevereiro, por 120.000 dólares. Aquela área, habitada por mulçumanos xiitas, é alvo das bombas israelenses desde os primeiros dias da guerra. Vários prédios haviam sido destruídos. Dias atrás, foi a vez desse onde moravam os filhos de Houssam e sua ex-mulher. Nenhum deles estava no local, mas três pessoas, três senhoras responsáveis pela limpeza, morreram.– E onde foi parar meu Playstation? – pergunta o filho de Houssam, olhando atônito o que restou do edifício. – Não existe mais. – E a bicicleta também não? Houssam fala que trouxe o filho até aqui porque, quando ele tinha a mesma idade, sua mãe o levou para ver as mesmas cenas de destruição. Era 1982 e Israel invadira o Líbano para combater a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), de Yasser Arafat. “Tanto a tragédia do passado quanto esta de agora”, afirma Houssam, “foi produzida pelas mesmas pessoas e quero que o meu filho saiba quem fez isso.” O filho de Houssam não tem dúvidas, ao menos é o que parece quando lhe pergunto o que sonha fazer no futuro: “Quero estudar bastante, fazer universidade e combater Israel”. Ahmad tem 7 anos de idade. Como sair deste ciclo de violência e vingança, como esquecer os escombros e humanizar o outro, o diferente? São perguntas que me faço enquanto caminho por Haret Hareik, também no sul da capital. O que vejo parece cena de filme. Numa área residencial, o que era um prédio de oito andares está reduzido a milhões de fragmentos de concreto que cobrem a cratera produzida pela bomba e, bem no meio, um carro pega fogo. Em volta, espalhados por aquilo que resta de uma rua, pedaços de um ventilador, uma coleção de xícaras quase intactas dentro de uma caixa, roupas, muitas roupas, uma boneca, peças de um fogão, partes de uma geladeira, um lustre sem lâmpadas e quilômetros de fios elétricos entrelaçados. Tudo isso sobreposto. Vejo também um maço de papéis rabiscados (será uma conta de luz, um boletim escolar, uma carta?), um porta-retrato sem foto, livros sem capas, uma escova de cabelo. Alguns brinquedos. Escombros. Prédios, casas e todo o resto transformados em poeira. E tem o cheiro. É uma mistura de odor de fumaça com carne putrefata. Caminho mais um pouco, viro a esquina e o cenário se repete. Outra rua do mesmo jeito, com o mesmo cheiro. E mais outra. E outra. Um bairro inteiro reduzido a nada. Assim que saí, o local foi atingido outra vez por mísseis israelenses.ClandestinoMinha viagem tem início dias antes, num lugar chamado Baramke Garage. Pelo que havia lido naqueles guias de turismo, imaginei uma rodoviária com sala de espera, lanchonete, banheiro e todo o resto. É de fato o lugar de onde saem os ônibus e os táxis, um grande pátio, dividido em dois. Com um detalhe: estou em Damasco, capital da Síria, onde tudo é muito quente, barulhento, confuso, caótico e sempre, sempre repleto de gente e poeira. A estação parece uma feira ao ar livre, onde se vende de tudo um pouco. Assim que entro, sou rodeado por dezenas de homens, que perguntam repetidamente a mesma coisa, indiferentes à minha resposta: “Vai para Amã? Vai para Beirute? Amã? Beirute? Vai para Amã?” Falam alto e se empurram e discutem e voltam a perguntar e voltam a discutir e eu com cara de clandestino que parou num país errado, na hora errada, e não sabe o que fazer para voltar.É 8 de agosto. Matt Corner, fotógrafo italiano, e eu temos como destino Beirute. As notícias, de grande parte das agências internacionais, dizem a mesma coisa: a capital está bloqueada, ninguém entra, ninguém sai. Mesmo assim – porque teimosia nessas horas é qualidade – fomos até a estação para saber se existiria alguma possibilidade. No meio daquelas mãos e bocas, um motorista disse que nos levaria por 50 dólares, puxou com força a minha mochila e a jogou no bagageiro. Cinqüenta dólares era de fato muito menos do que imaginava. Tínhamos lido que a corrida, com a guerra em curso, poderia custar até 500 dólares e que seria impossível chegar à capital. Saímos de Damasco, às 9 horas da manhã, com um táxi Dodge amarelo, ano 1978.
Beirute. No primeiro dia, aparentemente tudo normal.
No meio do deserto, no meio do nada, vejo o marcador de velocidade do carro: 150, 160, 170 quilômetros por hora. Primeiro, um forte estrondo e tudo acontece muito rápido. O Dodge é jogado com força para a outra pista, volta, fica no meio, perde outra vez o controle, nosso motorista tenta segurar firme, mas o carro parece ter vontade própria. “Se capotar, vamos morrer”, penso. Não capotamos, vamos diminuindo até parar no acostamento. Descobri que não era um pneu furado quando coloquei o pé para fora do carro e pisei numa mancha de óleo. Pelo que entendi, uma peça na parte de baixo do Dodge explodira por causa do calor, caindo no asfalto. O que fazer quando se está no meio do deserto com o carro escangalhado? Esperar. Tivemos sorte porque em seguida passou um conhecido do nosso motorista e nos deu carona.Já na fronteira, os primeiros sinais do conflito: um caminhão do Kuwait, da Red Crescent (Cruz Vermelha dos países árabes), uma frota de caminhões da Turquia com alimentos e remédios e duas pontes pela metade. Tivemos que ir pelo norte, desviando da via principal duas vezes, mas a estrada secundária era trafegável e em seis horas estávamos no nosso destino. Normalmente levam-se duas horas e meia.Enfim, Beirute, a “Paris do Oriente Médio”, das imagens publicitárias com seus bares e hotéis luxuosos, à beira do Mediterrâneo e ar cosmopolita. Beirute do comércio internacional da seda e do encontro entre culturas. Beirute dos xiitas, sunitas, drusos e cristãos maronitas. Beirute da linha verde, avenida no centro da cidade, que separa cada qual no seu devido lugar porque aqui – é bom não provocar muito – tudo parece estar por um fio e a convivência pacífica nem sempre foi possível. Como não foi possível saber, com exatidão, o número de mortos nos quinze anos de guerra civil. Dizem as estatísticas que, entre 1975 e 1989, 150.000 pessoas morreram. Beirute do Hollyday Inn com todas as suas paredes externas marcadas por balas e bombas daqueles anos tristes, e daqueles anos também as lembranças do assassinato de 241 fuzileiros navais norte-americanos, da ocupação israelense, da OLP, de Sabra e Shatila, da Milícia Falangista e de outros 38 grupos armados que agiam na cidade. Mas a Beirute em que estou entrando agora, mesmo sob bombas, está diferente. A Beirute de hoje tem um novo personagem principal, um novo nome, e ele se chama Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, o “Partido de Deus”. Perto da guerraO primeiro dia na capital foi uma surpresa. Pessoas nas ruas, os bares quase cheios, muitos negócios abertos e crianças jogando futebol nos terrenos baldios. Uma vida aparentemente normal. Pelo que lia nos jornais internacionais, parecia que Beirute estava, como o sul do país, paralisada e toda ela sendo bombardeada. Não foi o que testemunhei. A região de Dahye, no sul da capital, estava sendo atacada indiscriminadamente, mas o norte da cidade parecia viver como se nada fosse. Será que os anos de guerra civil tinham deixado essas pessoas indiferentes ao que estava acontecendo? Os dias passam e toda essa aura de descoberta, de fascinação, de aventura vai se perdendo. Aos poucos, vou sentindo e ouvindo a guerra: uma, duas, três explosões. E não é apenas o som dos aviões se aproximando e das bombas. São os vidros do quarto que parecem prontos a espatifar em mil pedaços, é o chão que treme, o sofá, a mesa. Tudo treme. E se os aviões resolverem sobrevoar esta região da cidade? Essa começava a ser a rotina. O que era, sob meu olhar, uma vida normal estava na verdade do avesso. A cada dia em Beirute me via sempre mais próximo do conflito e percebi que, talvez pela primeira vez, toda a minha paixão por testemunhar a história e poder compartilhá-la (mesmo sendo uma história de infâmia) transformou-se em apreensão e desânimo. E se a bolinha do destino – com o meu nome e número – caísse do globo? A verdade é que estava morrendo de medo.
A zona sul da cidade, chamada Dahie, é a mais populosa, e foi a mais bombardeada. Há poucos minutos cairam aqui quatro bombas
Medo e tristeza. São as sensações que provo quando vou ao hospital Rafik Hariri, o maior do país, com 544 leitos, todos ocupados. O hospital, que leva o nome do primeiro-ministro assassinado em fevereiro de 2005, ficou pronto há apenas um ano e meio. Quem quiser ter idéia – pelo menos um pequeno fragmento – do que é a guerra deve visitar um hospital de um país que esteja sob bombardeio. Ali é horror. Muito mais do que ver os escombros de uma casa, as ruas destruídas, os tanques e os aviões. Talvez ainda mais do que ver aqueles sacos plásticos um ao lado do outro, sem nome, sem nada, jogados pela estrada e levados como se fossem lixo. Uma paciente que está nesse hospital é Isra Amaij, de 17 anos. No mesmo dia em que foi destruído o prédio do filho de Houssam, na mesma região, o edifício de sete andares onde Isra estava foi atingido por uma bomba. Eram 6 horas da tarde. Ela estava em casa com os pais. O irmão chegou em seguida e conseguiu transportá-la até o hospital. Os pais morreram na hora. Mesmo com o rosto marcado pelos ferimentos e com o tubo que a faz respirar artificialmente, mesmo assim, vejo que Isra é muito bonita, tem os traços delicados e me parece estranhamente familiar. Os médicos dizem que a maior preocupação é o fígado, que foi perfurado, e o crânio, que sofreu vários traumatismos, mas seu quadro é estável. Cada quarto desse hospital, cada paciente que está aqui têm histórias semelhantes. Outro lugar onde se começa a perceber o que é a guerra é um campo de refugiados. Quase sempre sem nenhuma estrutura, vários campos foram montados para receber as 970.000 pessoas deslocadas pelo conflito. Sete mil delas vieram para a praça de Sanayah, região sunita no oeste de Beirute, a maioria proveniente do sul do país ou do sul da capital. A primeira cena que vejo é de crianças num grande círculo, sentadas, brincando com dois recreadores. O desafio é tentar pegar um molho de chaves sem fazer barulho. Quem levantar as chaves até a cabeça e não fizer ruído, ganha a parada. Silêncio. De repente, um barulho vindo do céu. Sim, são os aviões, é a guerra cotidiana, e depois o som que sempre se segue: bombas, explosões. Dessa vez são três. Mas nenhuma das crianças dá a mínima porque todas querem ganhar o jogo e não podem perder a concentração e essa história de avião e bomba já virou coisa bem comum. A praça não tem muitas árvores, o que significa que as sombras são poucas e poucas são as famílias que conseguiram um lugar protegido do sol. Nesta época do ano, a temperatura média é de 37 graus, mas parece muito mais e o calor dentro das barracas é ainda mais sufocante. Mas não é só o calor. Falta comida, falta remédio e há apenas quatro banheiros improvisados para aquelas milhares de pessoas. Não é difícil imaginar em que condições estão.O que mais comove nesse campo são os velhos e eles são em grande número. As crianças, de um jeito ou de outro, conseguem se adaptar mais rápido, fazem de qualquer objeto um brinquedo e vão tocando a vida, sempre junto com outrosmeninos e meninas. Os velhos, não. Vejo muitos deitados na grama, sem colchão, sem nada, nos únicos espaços que ainda restam com sombra, e estão quase sempre sozinhos. Muitos deles moraram a vida toda na mesma casa, naquela casa que talvez não exista mais e para eles, a essa altura, serão muito mais difíceis o recomeço e a reconstrução. Não só pelas dificuldades econômicas, mas pelo lado emocional e afetivo. Perder tudo o que se tem, inclusive todos os pequenos objetos de sua história pessoal, objetos de memória, deve ser ainda mais traumático do que perder quando aos 20 ou 30 anos. “Ainda que veja sua casa reconstruída”, escreveu o repórter brasileiro Lourival Sant’Anna, “quanto tempo terá para transformá-la em ‘sua’, para ter uma história nela?”Dentro da guerra Sem respostas. É assim que me sinto no dia 13 de agosto, domingo, véspera do já aceito cessar-fogo. Estou tomando um café em Hamra, bairro onde fica a Universidade Americana, quando escuto as bombas. A sensação é que elas estão explodindo na esquina, embora, como descobri mais tarde, a ofensiva tenha sido em Radof, um dos bairros de Dahye. Os carros estacionados disparam os alarmes ao mesmo tempo. “Devem ter sido bombas lançadas dos navios, me explica um garoto libanês, “essas são ainda mais potentes”. Quando chego ao local atingido, alguns minutos depois, vejo o cenário de sempre. Mas há uma diferença: a potência do ataque. Um bombardeio forte o suficiente para destruir por completo o Hassam Buildings, condomínio de seis prédios, cada qual com doze andares. Quantas pessoas estão soterradas? Naquele momento, ainda é impossível saber. Para fotografar ou entrevistar testemunhas nesses locais é preciso da autorização dos integrantes do Hezbollah. Estou mostrando a minha credencial quando escuto alguém gritar: “Está vindo um avião!” “Gás, gás, gás!”, diz um outro, e aqueles que estão ali correm sobre os escombros. Não consigo saber se estão fugindo pelo medo dos aviões ou pelo medo do gás. Por precaução, corro pelos dois. Se viesse um avião e atacasse novamente o local, como aconteceu várias vezes, a correria seria para lá de inútil, a contar do efeito que cada uma dessas bombas produz. Depois do susto, todos ficam em silêncio, tentando ouvir algum sinal de perigo no céu. Nada. Nenhum outro avião aparece, como também não aparecem ambulâncias nem bombeiros. Assim, as pessoas que chegam se dispõem a escavar. Vendo essa cena, a impressão que tenho é a de que a única organização eficiente no Líbano é o Hezbollah.
Dahie. Após o bombardeio, nuvens de pó e a busca de corpos sob os escombros. Uma menina de 10 anos estará entre os 5 mortos encontrados.
Só depois de quase uma hora chegam outros jornalistas e a defesa civil, sem nenhuma estrutura. De repente, entre a poeira e o concreto, surge parte de um corpo. Uma orelha, depois o cabelo e um pouco do rosto. É uma menina e deve ter pouco mais de 10 anos. Está vestindo um agasalho preto e uma camiseta da mesma cor. Tem os cabelos longos, escuros, amarrados por um elástico branco. Quando os homens a colocam sobre a maca, vejo um ferimento profundo no seu pé esquerdo e descubro, horrorizado, que metade de seu rosto, banhado em sangue, não existe mais. A menina é levada numa maca e vai com a ambulância em alta velocidade. Mas, como me pareceu óbvio, ir devagar ou não já não fazia nenhuma diferença. Ela estava morta. A guerra, para mim, a partir desse domingo, será sempre a imagem dessa menina. O mesmo impacto, a mesma dor, eu sentiria se visse crianças ou civis israelenses mortos pelo Hezbollah ou por qualquer outra organização, porque a vida de um vale tanto quanto a de outro. São vítimas, simplesmente. É isso que o terrorismo produz – seja ele de Estado ou não –, vítimas e mais violência e mais vítimas, num ciclo infinito. Não é o que pensa John Bolton, embaixador dos Estados Unidos na ONU. Para ele, como para todos os fanáticos do mundo, de paletó ou de fuzil, “os mortos civis libaneses não são moralmente a mesma coisa que as vítimas do terror em Israel”.Nos dias seguintes, segundo as testemunhas locais, outros quarenta corpos foram encontrados sob os escombros do Hassam Buildings, mas a mídia não deu muita atenção porque a guerra estava no fim e, no final das contas, um massacre atrás do outro não dá audiência. Mas por que essas pessoas não fugiram? Vários panfletos, lançados pela Força Aérea Israelense, advertiam a população para que deixasse o local. Por que mesmo sabendo do grande risco elas continuavam aqui? Faço essas perguntas ao professor Ali Dabbous, de 45 anos, que como tantos outros não deixou sua casa. “Nós, libaneses”, ele argumenta, “ao contrário dos israelenses, amamos nossa terra, amamos nossa casa. Se eu fosse embora, seria uma vitória para Israel porque é isso que eles querem. Eles querem que a gente fuja, que fique com medo, eles querem que a gente se dobre, mas nós não temos medo de morrer porque temos fé. O profeta Maomé (fundador do Islã, morto no século VII) disse: ‘Se Deus quiser que você morra, você vai morrer’. Por isso, para nós, a morte não nos assusta, muito pelo contrário”. Ali ficou durante os 34 dias de conflito em Dahye, a região na capital mais atingida pelas bombas. Nos primeiros quinze dias de guerra, todos os seus cinco filhos ficaram com ele. “Se nós morrêssemos”, ele finaliza, com voz segura e apaixonada, “seríamos mártires.” E assim o mundo segue. Segue na cultura da guerra, estimulada ao extremo por boa parte da mídia árabe. Presto atenção na cobertura dos jornais e nas televisões e os discursos se repetem. Cenas e mais cenas de libaneses mortos, de preferência crianças. Cenas de horror 24 horas por dia, em quase todos os canais. O que pretendem os donos dos meios de comunicação? Na cobertura de uma guerra é necessário usar todos os dias, a todo instante cenas de crianças em pedaços? A única coisa que me parece evidente é o resultado imediato desse tipo de jornalismo. Mais ódio, mais desejo de vingança e a certeza muito clara de que lado se deve estar. A mesma coisa acontece com parte da grande mídia ocidental, com a diferença de que as técnicas de persuasão são mais sutis e, por isso, quem sabe, mais poderosas. E, de ambos os lados, é sempre muito fácil distinguir o bem do mal. Na guerra não pode haver dúvidas.Uma hora e meia antes do início do cessar-fogo, Beirute sofre uma nova seqüência de ataques. É dia 14 de agosto. Mais bombas, mais prédios e casas destruídas, provavelmente mais gente morta. Fui acordado com o barulho infernal das explosões. Três dias antes, o Conselho de Segurança da ONU aprovara, por unanimidade, a resolução 1.701, proposta pela França e pelos Estados Unidos. A resolução determina o fim das hostilidades e a retirada do exército israelense do Líbano. A Unifil (Força Interina das Nações Unidas no Líbano), presente na região desde 1978, com 2.000 soldados, aumentaria seu contingente para 15.000 homens. Além disso, o exército libanês estaria no sul do país com outros 15.000 soldados. Ambas as partes aceitaram os termos do acordo. “Esses bombardeios, além de injustificáveis”, constata Eduardo Seixas, embaixador do Brasil no Líbano, “são completamente desnecessários. O que explica jogar bombas numa área residencial faltando tão pouco para um cessar-fogo?”. Saí do hotel, ao norte de Beirute, onde estava hospedado, e deparei com uma cidade diferente. A vitóriaParece um desfile. Capenga e desorganizado, é verdade, mas um desfile. Nas calçadas, em alguns prédios e em centenas de carros, as pessoas exibem a bandeira amarela do Hezbollah. Mais do que um clima de festa, uma sensação de alívio. E de orgulho, porque grande parte dos libaneses não tem dúvidas de quem saiu vencedor nessa guerra.Afinal, Israel não conseguiu nenhum de seus dois objetivos iniciais: destruir o Hezbollah e libertar os dois soldados capturados. Recebo um grande adesivo, muito bem-feito, com a imagem dos soldados da milícia lançando mísseis, com um escrito em inglês e árabe: “A Vitória Divina”. Durante o dia, ganhei outros adesivos, com diferentes frases, todos exaltando a “resistência histórica”. Vi também outdoors, placas e faixas. Tudo preparado com bastante antecedência porque a cidade acordou repleta de imagens da vitória divina. Mas qual vitória? A que preço? O preço está por toda parte. Está em Soltan, no sul da capital, área onde ficava a TV Al-Manar. Chego com os milhares de refugiados que caminham entre a poeira, como numa estranha procissão, para saber se suas casas ainda existem, se sobrou alguma coisa. Mohamad Assel, de 7 anos, me chama: “Olha só, aqui, bem aqui, era a minha casa”. Ele está sobre um amontoado de terra, vestido com uma camisa da seleção francesa e um calção da seleção alemã. Assel morava no décimo andar daquele edifício. “Olha só o que eu achei, mãe, nosso ferro de passar.” Sua mãe sorri e o coloca numa bolsa. Ele vai cavando, muito concentrado nesse serviço de recuperar os objetos da casa: “Mãe, nosso espremedor de laranja”. “Não, deixa isso aí, isso não é nosso”, é a resposta. É estranho, mas alguma coisa nesse país faz lembrar o Brasil. Não sei bem o que é. Talvez seja aquela característica, apontada com orgulho por todos os estrangeiros que conheci e que vivem aqui: “Este é o país mais ocidentalizado do Oriente Médio”. De fato, o Ocidente com seus negócios e valores está por toda parte. Sinceramente, não sei se isso é uma boa coisa, mas traz uma sensação de familiaridade. Talvez seja a nossa bandeira pendurada nas sacadas dos prédios, nas ruas – de uma casa a outra – e a quantidade de crianças com a camisa da Seleção. Porém, o que liga de fato o Líbano e o Brasil, acho, são as milhares de famílias com dupla cidadania, pessoas que possuem raízes e histórias nesses dois mundos. Uma dessas famílias é a de Anwar Youssef, que mora no valedo Bekaa. No dia em que nos conhecemos, eles tentavam – por causa da guerra – ir embora para o Brasil. Samara, de 17 anos, é uma das quatro filhas de Anwar. “Quando começaram a cair as bombas - ela relata - aquele barulho todo, cada vez mais perto, fiquei paralisada. Não sentia nada. Não tinha medo, não tinha raiva, nada. É como se aquilo não estivesse acontecendo. Fiquei parada no meio da sala, ouvindo, só ouvindo, e as bombas cada vez mais perto. Então veio a minha mãe e me puxou com força para uma parte da casa que não tem janelas porque era o lugar mais seguro. Mas parecia que meu pé estava grudado no chão”. Para Anwar, o pai, o Hezbollah é mais forte que um país e, por isso, é impossível destruí-lo. Pergunto o que ele pensa sobre a ação da milícia xiita. “No começo”, ele responde, “fui contra o seqüestro dos soldados, mas depois da reação de Israel, matando meus vizinhos, meus amigos, destruindo minha cidade... depois disso tudo, como posso ficar contra?” “Como ficar contra o Hezbollah, se são os únicos que nos defendem?”, questiona Siham Naboulist, de 32 anos. Nós nos encontramos quando o penúltimo comboio de brasileiros deixou o Líbano. Ela é mãe de duas meninas e dois meninos que têm como destino final Foz do Iguaçu, onde mora seu ex-marido. Ficar ou partir? Não foi uma decisão fácil. O Brasil, para ela, é terra estrangeira, distante, terra sem amigos e sem emprego. Mas é também para onde estão indo seus filhos. O que fazer? Ela decidiu ficar. “O pior”, ela revela, chorando, enquanto sai o ônibus que leva seus quatro filhos para o exterior, “não saber quando vou vê-los outra vez.” Isso também é a guerra. Vitória?
Nabatyie, uma das 6 províncias do Líbano, fica ao Sul, a região mais atacada. No cessar-fogo, uns fogem, outros trabalham na recuperação.
A Casa de Samir Com o cessar-fogo, vou até o sul do país, onde a guerra foi ainda mais intensa e destrutiva. Os 800.000 refugiados dessa região, com carros velhíssimos e superlotados de gente e de objetos, estão na mesma estrada. Já seria um problema se ela estivesse em boas condições, e não é o caso. Em todo o país, foram destruídos 145 pontes e viadutos. O resultado é uma fila de quilômetros, imóvel e barulhenta. Somos quatro no carro: o taxista libanês, Matt, Samir e eu. A história de Samir e sua família foi sempre uma ida e vinda, de um país ao outro, desviando das guerras e da morte. Samir nasceuem Serra Leoa e adulto foi morar no Líbano, terra do seu avô. Depois vai viver outra vez na África, depara com a guerra civil e perde o braço esquerdo num acidente de trânsito. Volta para o Líbano no final dos anos 70 e, em 1982, retorna à África devido à invasão israelense. Lá, por causa de outra guerra, se vê obrigado a fugir e caminha durante sete dias para chegar à fronteira com a Guiné. Não estava sozinho. Vai acompanhado por 65 libaneses, além de outros cinqüenta africanos. No percurso, três pessoas morrem, mas ele consegue chegar ao país vizinho e decidido a viver uma vida normal, tranqüila. Desde então, morava com a mulher em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.Samir é consultor imobiliário e acabara de comprar um apartamento no sul de Beirute, que seria o seu escritório e sua casa. Volta a morar no país, provisoriamente, porque está fechando um contrato com um investidor americano. E é aqui, no Líbano, que está quase toda a sua família. Mas no terceiro dia de guerra uma bomba reduz seu prédio, na capital, a ruínas. Por sorte, não havia ninguém no local. Dois dias depois, bombas atingem a casa onde morava sua família em Housh, ao lado de Tiro, no sul do país. Agora, Samir quer ir até lá, falar com alguns parentes e amigos e ver o que aconteceu. Matt e eu vamos junto com ele. No rádio do nosso táxi, as músicas de sempre, marchas de guerra e de protesto: “Governantes árabes, escutem o Líbano. Olhem os nossos mortos. Governantes, vocês estão dormindo? Perguntem ao Sol, perguntem à Lua: quantos são os nossos mortos?” Faz um calor insuportável. Horas depois, chegamos à casa da sogra de Samir em Tiro. Ela está vestida de preto com um lenço branco na cabeça e chora compulsivamente. Samir, sempre equilibrado, não chora nenhuma vez. Como consegue, depois de tudo, manter essa serenidade? Outra coisa surpreendente é como ele e alguns amigos da família fazem de tudo para nos receber bem. Oferecem café, perguntam se queremos alguma coisa, se foi boa a viagem, se estamos fazendo um bom trabalho, se gostamos do Líbano e que precisamos ver o país sem guerra, como é bonito, como é vivo.“Vamos?”, pergunta Samir, logo depois de terminado o café marroquino feito pela sogra. Então, fomos ao local onde era a casa de sua família. O carro estaciona devagar e ele repara em cada detalhe da vizinhança e, estranho, tudo em volta está normal, inteiro, intacto. A última vez que esteve aqui foi no final de maio e seria impossível imaginar o que aconteceria, de um segundo a outro, sem justificativa e sem aviso. Era uma casa dividida em três partes independentes, como pequenos apartamentos. Um deles estava alugado para um nigeriano, funcionário da ONU, e sua mulher. Não sobrou muita coisa. Só algumas fotos que Samir encontra sobre os restos, uma fita de vídeo, um pedaço da cadeira de sua mãe, além da chave do Mercedes, que não existe mais. “Essa casa”, ele diz, “foi construída pelo meu pai em 1970.” Yoseff Fawaz, que vive no prédio em frente, viu o que acontecera. Eram quase 7 horas da noite daquele 16 de julho. Ele não ouviu nenhum barulho de avião, o que o faz supor que tenha sido uma bomba lançada de um navio. Houve uma primeira explosão. Ele corre até a janela e vê Alice, uma das netas de Samir, na varanda. Segundos depois acontece outra explosão. “Aí eu não vi mais nada”, fala Yoseff. O nigeriano e a mulher morreram na hora. Morreram também Zahia, a mãe de Samir de 76 anos, Raian, a filha, de 24, e as duas netas, Alice de 5 e Celine de 2 anos. “Essa é a minha história”, ele diz, procurando objetos sobre os escombros da casa.
Após a trégua, milhares de carros rumam para o Sul, congestionando a estrada de Beirute-Tiro. Samir é do Sul, uma bomba matou toda sua família
O que me deixa perturbado é que não há ódio no seu jeito, nem mesmo desespero. Grande parte das pessoas com quem conversei nesses dias alimentava um sentimento de vingança, uma vontade enorme de fazer “sangrar o inimigo”, para usar as palavras do líder do Hezbollah. Como me disse o elegante e carismático Houssam Nasser, “estou triste por ter perdido meu prédio, porque meus amigos estão morrendo, mas feliz porque agora os israelenses também estão sofrendo e vão sofrer mais”. E completou: “Antes de 2000, éramos somente nós que morríamos, mas agora eles também estão morrendo”. Samir tem um discurso completamente diferente. O terroristaAntes de visitar os vilarejos mais castigados pela guerra, vou ao hospital Jabal Amal, em Tiro. Lá conheço Mohamad Al Raji Mossad, de 13 anos. Ele está sozinho. Mohamad é do povoado Al-Rashida e há cinco dias estava andando de bicicleta porque já tinha passado muito tempo sem fazer nada, porque já não agüentava mais todo aquele tempo em casa, não agüentava mais essa guerra – que, azar ainda maior, aconteceu bem durante as férias – e ele queria fazer o que sempre fez, brincar com os amigos, mas os amigos tinham sumido e ele foi com o pai, porque uma voltinha não pode fazer mal a ninguém e aqui, nessa parte do povoado, só tem civil e não há lógica jogar bomba nesta área. O passeio não durou muito. Uma bomba explodiu a poucos metros de onde estavam. O pai está entre a vida e a morte. Mohamad tem ferimentos por todo o corpo e teve amputadas as duas pernas. Vitória? Divina? “A guerra não terminou”, afirma o diretor do hospital, “porque os feridos não param de chegar.” São as vítimas de granadas e mísseis israelenses que falharam durante os ataques, mas que explodem facilmente quando tocados ou removidos. Segundo o Unicef, existem de 8.000 a 9.000 bombas desse tipo em solo libanês, todas desta guerra. Mas o problema é ainda maior porque Israel teria usado bombas de fragmentação, as cluster bombs, que se transformam em minas terrestres. Essas bombas, segundo relatório do Human Rights Watch, foram encontradas em pelo menos dez localidades do país, em apenas dois dias. Para Kenneth Roth, diretor da ONG, isso pode ser a ponta de um iceberg. O porta-voz da IDF (Força de Defesa de Israel), Hernan Geberovich, disse a Caros Amigos que “o uso de cluster bombs é legal, segundo lei internacional, e a IDF usa essas munições de acordo com essa norma”. É verdade, esse tipo de munição é permitido, mas não em regiões habitadas por civis, como é o caso de Nabatiyeh e Tabnine, onde integrantes da ONU localizaram as cluster bombs. Geberovich conclui dizendo que “a IDF está checando os detalhes específicos do incidente mencionado no relatório (doHuman Rights Watch)”. Assim que começo minha visita aos vilarejos, na cidade de Naqoura, vejo dezenas de pessoas agitadas em volta de uma casa. Alguns homens e mulheres estão em prantos na varanda onde há dois corpos estendidos. Estou distante, dentro do carro ainda, e não consigo identificar se são de crianças ou de adultos. Não tive muito tempo. Saio do carro e sou expulso na hora. Percebo que qualquer insistência, além de inútil, é arriscada. Estão todos muito nervosos. Mais tarde, soube através de alguns agricultores (porque aqui todos são agricultores ou pequenos comerciantes), que eram três crianças e tinham ido buscar água no campo. Duas morreram. Em qual tipo de bomba teriam pisado? Talvez tenha sido uma BLU 63, que se divide em outras 640 pequenas bombas, espalhando-se por uma área que pode chegar a 32 quilômetros quadrados. Qual a razão de jogar bombas de fragmentação nesses campos? De onde vêm essas bombas, onde são fabricadas? Estados Unidos. Continuo minha viagem pelos vilarejos de Thaire, Yarine, Al-Boustan, Marouahine e Alkarow. Aqui e ali, sinais de guerra, mas nada generalizado. Muitas vezes temos que parar o carro para que passem os pastores, com suas cabras e bezerros. Ao lado da estrada, uma vasta plantação de bananas e, um pouquinho mais adiante, a fronteira com Israel. É a partir de Aita ech Chaab que o cenário muda. Aqui, está tudo destruído e, além do efeito devastador das bombas, as paredes das casas guardam as marcas de tiros de fuzil e metralhadora. Na entrada de Bent Jbeil, a cidade que virou símbolo desta guerra, uma placa de outros tempos saúda os visitantes em francês: “Bem-vindos à Capital da Libertação”. Caminho pelo que era o centro da cidade e vejo uma escola de dois andares que ainda permanece de pé, mas as paredes já não existem mais. As cadeiras, o quadro-negro, a sala dos professores e os banheiros continuam onde sempre estiveram. Vejo uma casa quase intacta, não fosse um detalhe: ela está de lado, o que impressiona mais do que se estivesse toda destruída. Um senhor passa por mim, com o filho, e fala: “Ei, você, veja bem isso, veja bem qual é o plano de democracia do senhor Bush, o terrorista número um do mundo”. Vou vendo bem, mas tenho dificuldade em escrever minhas impressões no caderno, devido à poeira. Muitos negócios tiveram as portas de aço destruídas e ficaram abertos durante toda a guerra. E lá estão todos os computadores, visíveis, acessíveis a qualquer um, mas continuam no mesmo lugar. Não houve saques. Lá está o pequeno mercado, com alimentos e água, as prateleiras organizadas e cheias. Ninguém mexeu em nada. Vou embora do que restou de Bent Jbeil com a certeza de que a cultura ocidental tem alguma coisa a aprender com os moradores deste vilarejo. A derrotaA guerra dura 34 dias e deixa – num primeiro levantamento – 1.180 civis libaneses mortos, sendo que 355 são crianças. E são crianças boa parte dos feridos, 1.215, entre 4.500. Do lado israelense morreram 157 pessoas, entre civis e militares. Os prejuízos materiais no Líbano, afirma o governo, chegam a 3,6 bilhões de dólares. Segundo relatório da Anistia Internacional, Israel cometeu crime de guerra, atingindo indiscriminadamente a população civil e a infra-estrutura do país, lançando mais de 7.000 ataques aéreos e mais de 2.500 disparos marítimos. Já nos primeiros dias do cessar-fogo, Nasrallah anuncia que ajudará financeiramente cada família que teve o lar destruído. Não é pouco. Calcula-se que 15.000 casas tenham virado pó. Num cálculo aproximado, o valor doado pela milícia xiita superaria os 150 milhões de dólares. Centenas de militantes do Hezbollah iniciam o cadastramento das famílias atingidas. Nada dessa ajuda financeira, desse apoio à população, é novo. O grupo, há anos, mantém uma rede de assistência social que inclui escolas, orfanatos e hospitais, ocupando os espaços vazios deixados pelo governo. Hezbollah é uma estranha mistura de milícia, partido político e movimento social.Shadid, de 30 anos, é integrante do Hezbollah. Ele está no sul da capital, num prédio atingido pela guerra. Veste calça jeans e, sobre a camiseta branca, uma espécie de babador com o símbolo da milícia, além de um chapéu com a mesma figura. Shadid me explica que tudo acontece muito rápido, porque não há tempo para burocracias. Ele vai ao local, fala com a família, faz o cálculo e em 24 horas o dinheiro estará depositado numa conta, chamada de “Jihad para Reconstrução”. Será uma quantia suficiente para pagar um ano de aluguel. A família ganha uma senha e retira o dinheiro. Pronto, simples. “E de onde vem esse dinheiro todo?”, pergunto. “Vem dos bancos da Síria e do Irã”, é a sua resposta. Não são apenas os militantes do Hezbollah empenhados na reconstrução. O governo do Líbano irá indenizar a família das vítimas e os mutilados no conflito. Os Estados Unidos, que apoiaram do início ao fim a ofensiva israelense, também anunciaram apoio financeiro. O governo brasileiro doou 2,7 toneladas de rem édios e a comunidade libanesa no Brasil enviou outras 6 toneladas como ajuda humanitária. Porém, o que mais chama a atenção no Líbano é como o povo mais fraco e agredido consegue forças para se levantar e levantar quem precisa de ajuda. Por todos os lados encontro libaneses, a maioria jovens, todos civis, tentando colaborar como podem na reconstrução. A guerra é a mais vergonhosa de todas as ações humanas, mas é também palco de cenas de solidariedade e altruísmo.Os escombros serão varridos, boa parte dos prédios, estradas e usinas será reconstruída. Mas existem destroços mais profundos, feridas que não cicatrizam nunca. Porque a guerra, como já se disse tantas vezes e tantas vezes se esqueceu, não acaba com o cessar-fogo. Uma das conseqüências mais evidentes é o sentimento de ódio e com ele o sentimento de vingança. O aumento dos extremismos e da certeza de que só a violência será capaz de suprir o que se foi e o que se perdeu. Quem perde um filho, o pai, a mãe ou um grande amigo numa guerra, quem já sofreu alguma grande injustiça sabe do que se trata. Como afirmou Jamil Mroue, editor-chefe do prestigiado jornal libanês Daily Star, “não é possível se livrar de Nasrallah destruindo suas armas, mas criando uma sociedade sustentável”. Mas o único objetivo de Israel era, de fato, acabar com o Hezbollah? Para alguns analistas políticos, a guerra já estava sendo planejada e a captura dos dois soldados foi apenas um pretexto. Segundo eles, a intenção do Estado judeu seria enfraquecer o poder do Irã na região, colocando no Líbano um “governo amigo”. E como isso seria possível? Simples, causando grandes danos à infra-estrutura do país que estimulariam as rixas sectárias entre xiitas (35 por cento), sunitas (25 por cento), cristãos (35 por cento) e drusos (5 por cento). Diante de um país enfraquecido, à beira de uma nova guerra civil, Estados Unidos e Israel apoiariam um governo fantoche que lhes serviria de testa-de-ferro. Sim, isso ainda é uma suposição. Mas faz todo o sentido, porque em 1982 foi mais ou menos esse o objetivo da invasão. Naquela época, o então primeiro-ministro Menachem Begin e o ministro da Defesa, Ariel Sharon, invadiram o Líbano para combater a OLP. Mas não só. O que a dupla pretendia era colocar no poder Bashir Gemayel, líder da milícia falangista maronita, considerado um aliado. Assim, pela lógica israelense, seria mais fácil a destruição da OLP e de todos os árabes que insistissem na idéia de um Estado palestino. E mais importante: a ocupação da Cisjordânia, por colonos judeus, seguiria sem resistência. A guerra de 1982 transformou Arafat e seus guerrilheiros num peso insuportável para o Líbano e, então, em agosto daquele mesmo ano, a OLP foi obrigada a deixar o país, com o rabo entre as pernas. Isso é fato. E é fato também que – dessa vez – o final da história foi diferente. A atual ação de Israel pode até ter destruído parte da capacidade militar do Hezbollah, mas o fortaleceu politicamente, lhe deu de bandeja centenas, senão milhares de homens e mulheres dispostos a compartilhar sua luta, dispostos a vestir seus uniformes e empunhar suas armas. O Hezbollah está mais vivo do que nunca. O tiro saiu pela culatra. A verdade é que será impossível falar de paz nesse pedacinho de mundo enquanto o problema de fundo não for resolvido. E o problema, sempre o mesmo, continua sendo a questão palestina. Será impossível falar em paz enquanto Israel desrespeitar tratados internacionais e continuar ignorando a resolução 242 da ONU, que exige que o país se retire dos territórios ocupados em 1967, e a resolução 194, que reconhece o direito dos palestinos refugiados de voltarem a suas terras. Será impossível falar em paz enquanto os palestinos viverem sob um regime de apartheid, sofrendo humilhações e violências cotidianas de todos os tipos. Para ter idéia, de 25 de junho a 25 de agosto, duzentos palestinos foram assassinados em Gaza. Enfim, será impossível falar de paz permanente enquanto Israel continuar cometendo – sempre em nome do direito de defesa – crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Vou embora do Líbano pensando em Samir, que perdeu a mãe, a filha e as duas netas nessa guerra, mas que, ainda assim, não se deixa envolver pela cultura da morte. Lembro do que ele me disse enquanto passávamos sobre o rio Litani: “Eu conheço muitos israelenses e são pessoas como você e eu, são pessoas normais. Não os vejo como monstros. Nunca os vi assim e não os vejo agora. Sei que existe uma diferença grande entre a população civil e os atos do governo, sei que o Líbano é desde sempre joguete dos interesses da Síria, do Irã e dos Estados Unidos e é por causa desse conflito de interesses que milhares de civis são assassinados. É hora de dizer chega, é hora de parar, é hora de perceber que as armas não resolvem nada. A guerra gera mais guerra e mais famílias serão destruídas. Hoje, coloco todos os meus problemas nas mãos de Deus”. Lembro-me de ter perguntado a ele o que pensava sobre todos os cartazes espalhados pelo país celebrando a “vitória divina”. “Olha”, ele disse, com a voz serena, “não sei quem ganhou, mas sei quem perdeu. Os civis perderam. Mais de 1.300 pessoas morreram nessa guerra. Eu perdi as pessoas que mais amava e por quê? Em nome do quê?” Ele faz uma pausa e me pergunta: “Você sabe a resposta?”. Não, eu não sei. Fernando Evangelista é jornalista.

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